sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Algumas observações aos comentários dos Amigos do Velho

Eu, Júlio Gardesani, e não o próprio Cangalho, venho responder os três valiosos comentários sobre a “Singela apresentação do Cangalho”.

Carolzinha, meu amor. O Velho não planta em ninguém. Imagina, um Cangalho como ele! O que acontece é que a Pepê Bombom é um bombonzinho que ninguém quer desembrulhar. Às vezes, fica tanto tempo sem um cliente a puta, que sente a necessidade humana de ter um homem. Esse homem, o único que a desembrulha, é o Velho.

Sartorato, meu amigo. Os olhos vermelhos se devem ao cansaço, à poluição, às noites mal dormidas. Teve tempo do Cangalho pensar em rastafari, no entanto, abandonou Jah, mas seguiu consumindo a hóstia da religião jamaicana.

V.D.S. (Vanessa), a imparcial e também amiga. Pois já fui poeta. Ruim é verdade. Quem não gosta do azul é o Velho Cangalho e não eu. Este Blog é imparcial, assim como eu. O texto do escritor comunista português José Saramago será balanceado com boas argumentações de Delfin Neto e antigos textos de Mussolini.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A singela apresentação do Velho Cangalho, sua barba canarinho e alguns amigos

Como ainda não sei o que é ou o que significa este blog, publico aqui um devâneio que rendeu o título da página: Velho Cangalho, sua barba canarinho, seu cãozinho Preto e a Pepê Bombom. A história do Velho Cangalho, cansado de guerra, deve continuar - já gosto deste cidadão - se a campanha eleitoral de 2008 um dia acabar.

Em qualquer canto se sentia brasileiro. As cores da banderia do Brasil – o verde, o branco e o amarelo - o Velho Cangalho carregava em sua espichada e suja barba. O branco pela idade, o amarelo pelos agora escassos cigarros, obrigatoriamente reduzidos por falta de dinheiro, e o verde de sujeira – às vezes parece alface, às vezes catarro, mas um menino do bazar diz que “vira e mexe” Cangalho sai carregado da lojinha com papeis do tipo crepon.

Conhecido nas ruas de paralelepípedo das pensões e asilos e de uma das tantas mulheres-dama do lugar, a Pepê Bombom, bombom que ninguém gostava de desembrulhar, todos estranharam ver o Velho Cangalho e sua barba canarinho naquele lugar.

Homem que já pediu comida, recebeu panfleto e aperto de mão de alinhado candidato, que trabalha, transpira, carrega a barba e a carrinhola com o cachorro Preto, e que também já foi chamado de vagabundo sem sequer ter onde deitar para pôr os pés para cima em dia de labuta que lhe rendia orgulho. Gostava de quase tudo, só não gostava do azul - Céu é azul e eu aqui?

Lá, onde estranharam ver o Cangalho, carregado com o seu cansaço, ele foi encontrar um amigo barbudo. Percorreu com as vistas vermelhas todo o lugar e entrou. Reconheceu o barbudo de olhos azuis – gostava apenas deste azul - que lhe era amigo desde que nasceu. Não pediu licença. Duas senhoras cheirando a Dama-da-Noite, beatas que mais lembravam Pepê Bombom, a Mulher-Dama, cumprimentaram Cangalho: disseram-lhe um oi seco as mulheres-planta.

- ...

Como se precisasse pedir permissão. Com as reticências, o Velho não pediu licença, disse cheguei. Olhou pros lados, pros cantos, pra cima. Passou por cada canto. Coçou a barba e acenou para seu amigo também barbudo. Voltou pra rua, olhou para o céu, pensou no azul e afanou o Preto.

"Onde está a esquerda?", por José Saramago

Texto publicado pelo escritor português em seu site, O Caderno de Saramago, no dia 1° de outubro de 2008 e reproduzido pelo site da Agência Carta Maior.
Eu nem sabia que o Saramago tinha um blog; foi bom saber.
Segue o artigo.

Ausento-me deste espaço por vinte e quatro horas, não por necessidade de descanso ou falta de assunto, somente para que a última crónica se mantenha um dia mais no lugar em que está.
Não tenho a certeza de que o mereça pela forma como disse o que pretendia, mas para lhe dar um pouco mais de tempo enquanto espero que alguém me informe onde está a esquerda…

Vai para três ou quatro anos, numa entrevista a um jornal sul-americano, creio que argentino, saiu-me na sucessão das perguntas e respostas uma declaração que depois imaginei iria causar agitação, debate, escândalo (a este ponto chegava a minha ingenuidade), começando pelas hostes locais da esquerda e logo, quem sabe, como uma onda que em círculos se expandisse, nos meios internacionais, fossem eles políticos, sindicais ou culturais que da dita esquerda são tributários. Em toda a sua crueza, não recuando perante a própria obscenidade, a frase, pontualmente reproduzida pelo jornal, foi a seguinte: “A esquerda não tem nem uma puta ideia do mundo em que vive”.

À minha intenção, deliberadamente provocadora, a esquerda, assim interpelada, respondeu com o mais gélido dos silêncios. Nenhum partido comunista, por exemplo, a principiar por aquele de que sou membro, saiu à estacada para rebater ou simplesmente argumentar sobre a propriedade ou a falta de propriedade das palavras que proferi. Por maioria de razão, também nenhum dos partidos socialistas que se encontram no governo dos seus respectivos países, penso, sobretudo, nos de Portugal e Espanha, considerou necessário exigir uma aclaração ao atrevido escritor que tinha ousado lançar uma pedra ao putrefacto charco da indiferença.Nada de nada, silêncio total, como se nos túmulos ideológicos onde se refugiaram nada mais houvesse que pó e aranhas, quando muito um osso arcaico que já nem para relíquia servia.

Durante alguns dias senti-me excluído da sociedade humana como se fosse um pestífero, vítima de uma espécie de cirrose mental que já não dissesse coisa com coisa. Cheguei até a pensar que a frase compassiva que andaria circulando entre os que assim calavam seria mais ou menos esta: “Coitado, que se poderia esperar com aquela idade?”

Estava claro que não me achavam opinante à altura.O tempo foi passando, passando, a situação do mundo complicando-se cada vez mais, e a esquerda, impávida, continuava a desempenhar os papéis que, no poder ou na oposição, lhes haviam sido distribuídos.

Eu, que entretanto tinha feito outra descoberta, a de que Marx nunca havia tido tanta razão como hoje, imaginei, quando há um ano rebentou a burla cancerosa das hipotecas nos Estados Unidos, que a esquerda, onde quer que estivesse, se ainda era viva, iria abrir enfim a boca para dizer o que pensava do caso.Já tenho a explicação: a esquerda não pensa, não age, não arrisca um passo.

Passou-se o que se passou depois, até hoje, e a esquerda, cobardemente, continua a não pensar, a não agir, a não arriscar um passo. Por isso não se estranhe a insolente pergunta do título: “Onde está a esquerda?” Não dou alvíssaras, já paguei demasiado caras as minhas ilusões.